O presente trabalho surge no âmbito da disciplina de Perspectivas Africanas dos Fenomenos Psicológicos e tem como principal objectivo analizar alguns aspectos do texto de Paulo Granjo (http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218648889I2wZR8sa3Hs54SJ3.pdf) e Ilunde Cabral (http://www.uc.pt/en/cia/publica/AP_artigos/AP22.23.06_Cabral.pdf) referentes ao fenómeno psicológico, sua interpretação pela psicologia moderna e pela cultura moçambicana, tratamento cultural moçambicano do fenómeno, seu resultado, e dar um parecer crítico.
2. Identificação do fenómeno psicológico
O fenómeno em causa no texto pode ser identificado como tráuma psicológico pós-guerra.
3. Apresentação da interpretação do fenómeno pela Psicologia moderna
Segundo Pepulim (2007), a palavra trauma é oriunda do grego (tráuma), a qual significa ferida. Para Freud citado por Batista (s/d), trauma psíquico é compreendido, como experiências emocionais que se constituem como factor etiológico para o aparecimento da Histeria, ou seja, é toda impressão ou vivência que provoque afectos penosos de medo, susto ou vergonha e que o sistema psíquico tem dificuldade para resolver por meio do pensamento associativo ou por reação motora.
Trauma psicológico é o dano provocado à estrutura mental, sem lesão física aparente. O trauma acarreta uma exacerbação do medo, o que pode conduzir ao stress, envolvendo mudanças físicas no cérebro e afectando o comportamento e o pensamento da pessoa, que fará de tudo para evitar reviver o evento que lhe traumatizou. Igualmente, pode acarretar depressão, comportamentos obssessivos compulsivos e outras fobias ou transtornos , como o de pânico. Um evento traumático envolve uma experiência ou série de experiências repetidas que afectam a maneira do indivíduo lidar com idéias ou emoções envolvidas com aquela experiência, podendo às vezes durar semanas ou anos. De acordo com Mestriner (s/d), alguns sintomas podem se notar no individuo traumatizado, tais como: ataques de pânico, ansiedade e fobias; Comportamentos de evitação (evitar lugares, atividades, movimentos, lembranças ou pessoas); Atração para situações de perigo; Comportamentos de vícios (comer demais, beber, fumar etc.); Atividade sexual exagerada ou diminuída; Amnésia e esquecimentos; Inabilidade de amar, nutrir ou se comprometer com outras pessoas; Medo de morrer ou de ter uma vida curta; Automutilação (cortar-se, machucar-se); Perda de crenças (espiritual, religiosa e interpessoal).
4. Apresentação da interpretação do fenómeno pela cultura moçambicana
Moçambique é um país multicultural. Um determinado fenómeno pode ser interpretado de formas diferentes dependendo da cultura. Segundo Granjo (2007), a possessão pelos espíritos e a adivinhação são elementos centrais dos modelos interpretativos das culturas a Sul de Moçambique. Fazem parte de um sistema mais geral de crenças, práticas e comportamentos relativos ao bem‐estar e normalidade social que é a chamada medicina ‘tradicional’. O espírito pode tanto ajudar como afligir os vivos. A saúde e bem‐estar do indivíduo dependem da harmonia na sua relação negociada com os espíritos dos mortos, e a doença resulta frequentemente do comportamento indevido dos vivos face aos mortos. Os espíritos exprimem o seu desagrado através da produção de situações problemáticas e ‘patológicas’ no indivíduo vivo, cuja resolução depende de ele observar uma série de condições. A entidade ‘espírito’ é ao mesmo tempo agente patogénico e agente de cura.
Na cultura Moçambicana a saúde é mais do que um processo corporal de bem‐estar normalizado; é um processo de vida definido por relações harmoniosas entre o ser humano e o meio ambiente, o ser humano e os espíritos dos seus antepassados, e entre espíritos ancestrais e o meio ambiente. O ‘azar da doença’ raramente é fruto do acaso, resultando da acção do meio ambiente contaminado, de espíritos ancestrais descontentes ou de feiticeiros (Granjo, 2007).
Porque os espíritos podem influir com bastante força nas acções,comportamentos e capacidades físicas, emotivas e racionais do hospedeiro,a possessão é concebida não apenas como um comportamento problemático mas como uma verdadeira doença, a maior (e às vezes a única) responsável pelos problemas do indivíduo na adaptação socio‐familiar, após o seu regresso à vida civil.
5. Apresentação do tratamento cultural moçambicano do fenómeno e seu resultado
O tratamento deste fenomeno varia de cultura a cultura dependendo de como cada uma interpreta o fenomeno. No sul de Moçambique o fenomeno em questão pode ser considerado como possessão de espiritos. O espírito pode tanto ajudar como afligir os vivos. De acordo com Granjo (2007), para o tratamento da doença, há certos procedimentos que devem se ter em consideração: o nyamussoro (curandeiro) tem antes de diagnosticar (os contornos concretos do problema) e adivinhar (identificar o(s) espírito(s) por detrás do problema e as suas exigências). A cura ocorre através da execução de rituais de purificação ou kuhlapsa e rituais de exorcismo ou kufemba, que podem ser complementados por rituais secundários e remédios ervanários, que no seu conjunto servem para “endireitar” a vida e o comportamento social do paciente.
O ritual de purificação kuhlapsa tem a capacidade de identificar os espíritos possuidores e fazê‐los abandonar o hospedeiro, curando a doença. É um ritual de reequilíbrio social, espaço de cura física e simbólica, domínio de reabilitação, reconstrução identitária, reintegração, e reconciliação. O kuhlapsa não serve apenas para curar, serve também para prevenir o potencial de doença ou ‘azar’ trazido da guerra. O ‘azar’ da possessão é uma consequência potencial, mas não inevitável, da experiência de guerra (Granjo, 2007).
O ritual kuhlapsa apresenta uma forma geral uniforme, com pequenas variações de conteúdo simbólico para adaptar o ritual a cada caso. Idealmente o kuhlapsa é realizado dentro da casa do indivíduo doente (caso não haja casa, no espaço físico da mesma), para que ele beneficie do apoio dos espíritos ancestrais na purificação. Quanto mais cedo for feito o ritual após o retorno do doente, melhor. Quanto mais tempo passa após o retorno, menos forte é o efeito do ritual e maior é a necessidade de repetir várias vezes a aplicação do medicamento para que o indivíduo fique completamente livre dos espíritos que o possuem.
Uma forma comum de realização do ritual é a seguinte: a família do indivíduo retornado, solicita um tinyanga local para a cerimónia. Este, já informado que se trata de um retornado
da guerra, define o quadro de acção ritual a realizar, e procura no mato ingredientes para o medicamento. No espaço físico do ritual (a casa, o pátio ao ar livre ou uma pequena cabana construída para o acto) o tinyanga executa uma consulta de diagnóstico de problema, recorrendo à adivinhação por ossículos mágicos, através dos quais conversa com os espíritos presentes no doente. Nesta conversa tinyanga identifica os espíritos, as exigências destes e convence‐os a abandonar o corpo hospedeiro. O abandono é negociado, mediante a explicação das condições de guerra nas quais o doente agiu ‘mal’ (sob efeito de drogas, sob ameaça de morte), a apresentação formal dum pedido de desculpas e a satisfação das exigências dos espíritos, caso a explicação e o pedido de desculpas não sejam suficientes. Depois o tinyanga
prepara o ‘medicamento’ em água fervente, e utiliza‐o para literalmente dar um banho ao doente. Este banho lava simbolicamente os espíritos possuídos para fora do doente, purificando‐o e eliminando deste modo os elementos nocivos que possam perturbar ou adoecer o indivíduo. Depois do banho, o ‘novo’ indivíduo, já separado da identidade de combatente, pode sofrer algumas pequenas incisões corporais (sobretudo na parte superior do tronco) onde o tinyanga introduz outros medicamentos que reforçam a cura pela purificação (Granjo, 2007).
Há variações quanto ao medicamento e ao modo como os espíritos possuídos são ‘lavados’: no espaço físico do ritual o tinyanga mata um animal de pequeno porte e mistura o sangue deste com as cinzas dos pertences do doente relacionados com a experiência de guerra (roupas, sapatos, etc.), previamente queimados, e lava o doente com este preparado; simbolizando nas cinzas a morte da experiência de guerra e da identidade de “combatente”, e no sangue a purificação. Outra versão é queimar os mesmos pertences e colocar as cinzas num recipiente fechado (por exemplo uma garrafa, que é depois atirado, de costas, num cruzamento de vias de comunicação; simbolizando a separação ou tomada de caminhos diferentes entre o indivíduo doente e o indivíduo purificado, socialmente renascido.
Durante o ritual não se chega a falar da experiência de guerra do doente, apenas se medicaliza os comportamentos anormais reais ou previstos. O ritual geralmente precavê contra a totalidade de eventos potencialmente experienciados em contexto de guerra. Não há um medicamento único, para cada caso elabora‐se uma receita adequada. As diferenças na execução do ritual têm a ver mais com a variação nos sintomas provocados pela doença da possessão, do que com o conteúdo da experiência em si: dois indivíduos com uma experiência de guerra similar – por exemplo duas crianças‐soldado que foram combatentes – podem necessitar de kuhlapsa diferentes. O ritual de purificação actua em três vertentes: reabilitação, reintegração e reconciliação (Granjo, 2007).
De acordo com dados recolhidos em uma entrevista a um médico tradicional da cultura Chuabo do centro de Moçambique província da Zambézia residente em Maputo (Ludovico, 2011), o fenómeno em questão não é identificado como possessão de maus espiritos mas sim apenas como recordações da guerra pelo facto do individuo não ser tratado tradicionalmente antes e depois da guerra. O nome do tratamento do fenómeno é Unsúluso ou Osiwomússoro que quer dizer lavar cabeça. O médico tradicional que executa este tipo de tratamento chama-se Muláula que é o nome impregue aos médicos tradicionais mais competentes. O muláula tem que fazer mistura de certos elementos para formar o medicamento: retira a água do rio exatamente no local onde há um remuinho de água, mistura com uma planta de nome wiriwire e adiciona a parte do coqueiro que foi atacada pelo relâmpago. Depois da mistura feita o individuo é vacinado (pequenos cortes com lamina na pele e introduzir o medicamento) em duas partes do corpo que são: na parte superior das costas e no peito do indivíduo. O médico tradicional afirmou que após o tratamento o individuo fica curado até mesmo aqueles que se encontram em estados de possessão muito penosos.
6. Considerações finais
Moçambique é um país multicultural. Um determinado fenómeno pode ser interpretado de formas diferentes dependendo da cultura em que este ocorre. O fenómeno em causa no texto de Paulo Granjo e Ilundi Cabral é interpretado de formas diferentes em Moçambique, pois na região Sul é tido como possessão de espiritos e na região Centro é tido apenas como recordações de guerra causadas por ausência de tratamento tradicional antes e depois da guerra.
Com os textos, nota-se que os procedimentos de tratamento tem efeitos positivos no que diz respeito a doença ou o mal-estar no individuo. É de salientar que a cura depende das crenças do indivíduo em relação ao tratamento.
Como psicólogo, atendendo e considerando que os procedimentos científicos de cura usados pela Psicologia para garantir o bem-estar ou a saúde dos pacientes tem em muitos casos, e não todos, suscitado resultados positivos nos individuos, ela deve procurar interagir com outras formas de saber seja do senso comum como outras áreas científicas de modo a ter uma compreensão holistica do ser humano garantindo uma intervenção mais abrangente.
O individuo é dotado de crenças culturais, a eficácia e eficiência do tratamento não so depende dos conheciementos e técnicas psicológicas mas também depende das crenças que o individuo possui do tratamento. Nota-se que tanto o psicólogo como os médicos tradicionais usam procedimentos diferentes no processo de tratamento mas ambos conseguem a cura do individuo. Contudo, é bastante importante conciliar as teorias/conhecimentos científicos aos conhecimentos ou normas cultuais do individuo, é também importante que haja interação entre os psicólogos e os médicos tradicionais moçambicanos de modo a se contextualizar as teorias facilitando assim o processo de intervenção psicológico.
7. Referências bibliográficas
• Mestriner, A. (s/d). Vida Sem Estresse. Acessado no dia 4 de Abril de 2011 em http://www.vidasemestresse.com.br/page7/page4/page4.html.
• Pepulim, P (2007). Blog trauma: Definição de trauma. Acessado no dia 4 de Abril de 2011 em http://notrauma.blogspot.com/2007/08/definindo-trauma.htmln.
• Batista, F. (s/d). A Concepção de Trauma em Sigmund Freud e Sándor Ferenczi. Acessado no dia 4 de Abril de 2011 em http://www.fundamentalpsychopathology.org/anais2006/4.26.3.1.htm.
• Granjo, P. (2007). Limpeza ritual e reintegração pós-guerra em Moçambique, Análise Social. Acessado no dia 6 de Abril de 2011 em http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218648889I2wZR8sa3Hs54SJ3.pdf
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